Os indígenas da etnia Puyanawa, que vivem há tempos imemoriais na região do Vale do Juruá, oeste do Acre, tentam consolidar o resgate de uma cultura ancestral que foi fortemente desagregada com o avanço das atividades extrativas durante o ciclo da borracha, no século passado. No fim de julho, a comunidade, localizada no município de Mâncio Lima, a cerca de 700 quilômetros (km) de Rio Branco, recebeu um grupo de 70 influenciadores digitais para uma imersão promovida pelo projeto Creators Academy, como forma de dar visibilidade à causa indígena e seus modos de vida associados à preservação do meio ambiente, em tempos de mudanças climáticas.Assim como outras etnias da Floresta Amazônica, o contato ocorrido com os invasores não indígenas resultou em expropriação de terras, separações familiares, assassinatos e mortes decorrentes de doenças. Além disso, muitos foram obrigados a trabalhar nos seringais e proibidos de exercer seus costumes tradicionais, criando uma sobreposição com a cultura branca ocidental que até hoje se reflete na sociedade local.
“Nós fomos um povo detectado aqui em 1905, e em 1910 foi a captura de nossos antepassados. Ficamos escravizados do coronel Mâncio Lima até 1950, quando ele faleceu”, relata o cacique Joel Puyanawa (foto).
O coronel foi um dos maiores seringalistas do Acre na primeira metade do século 20 e o principal responsável pela opressão dos povos originários da região. A colonização liderada por ele resultou na ocupação do território e na fundação de áreas urbanas, inclusive no município que leva seu nome.
Da espoliação à resistência
“Meus bisavós tiveram o desprazer do contato forçado com os não indígenas, certamente fomos obrigados a não praticar nem um traço cultural que envolvesse a identidade do meu povo. É óbvio que o coronel Mâncio Lima, o mesmo que por sua miserável crueldade quase dizimou meu povo por inteiro, não ia deixar que nosso povo continuasse a perpetuar sua identidade, sua aparência e seu idioma”, escreveu Caroline Puyanawa em um texto publicado nas redes sociais na semana em que celebra o Dia Internacional dos Povos Indígenas, no último dia 9 de agosto.
“Meu nome no registro de nascimento é Caroline Lima da Costa, [mas] este ‘Lima’ nunca pertenceu a ninguém da minha família, temos essa marca no nosso nome porque todo puyanawa que nascia era como se fosse objeto de pertencimento deste Coronel”, acrescentou Carolina, que tem 24 anos, é estudante de tecnologia em agroecologia e artesã em sua comunidade. Só a partir de 2012 os puyanawa passaram a ter o direito de usar esse nome nas certidões de nascimento, e a grande maioria dos cerca de 750 indígenas da etnia ainda não conseguiu efetivar a mudança. Esse período marca também a retomada mais forte da cultura puyanawa, que nunca desapareceu, mas foi muito ameaçada.
Segundo o cacique Joel, em 1983, quando começaram os primeiros trabalhos de reconhecimento oficial dos puyanawa para fins de demarcação – que só se efetivaria em 2001 –, havia apenas 16 falantes da língua do seu povo, que faz parte do tronco linguístico Pano, falado por povos indígenas em partes do Brasil, Peru e da Bolívia. Joel tinha apenas 14 anos quando viu seu avô cantar no idioma puyanawa pela primeira vez. Já indicado a cacique, em 2008, Joel percebeu, durante um encontro cultural de povos indígenas do Acre, que haviam perdido contato com a essência de sua própria história. “Não sabíamos sequer cantar em nosso idioma, não conhecíamos as técnicas de artesanato e ainda pouco da medicina tradicional”, revela.
A partir daquele momento, Joel e outros parentes lideraram um trabalho na comunidade que ajudou a fomentar uma afirmação de orgulho étnico de seu povo e a reconstrução de laços quase perdidos. Ouvindo os mais anciãos ainda vivos, aprenderam o idioma, que atualmente é ensinado na educação pública oferecidas nas aldeias. Contando com a solidariedade de outros povos indígenas da região, como os Ashaninka, reconstituíram quase todo o repertório de conhecimento sobre artesanato e medicinas ancestrais, como o uso do rapé e da Ayahuasca. “Houve uma cobrança espiritual, que exigiu de nós o conhecimento sobre nossa própria ancestralidade”, afirma Joel.
Artesanato e agricultura
“O artesanato é a identidade de um povo, como sua língua, e tem sido um dos principais aspectos do fortalecimento da cultura puyanawa”, afirma Valéria Puyanawa, que, assim como outras mulheres e homens da comunidade, desenvolve uma variedade de mais de 35 itens, de vestuário, adornos e objetos de uso cerimonial. Um dos exemplos é a tecelagem de tucumã, o uso de jenipapo e bambu.
No caso das peças adornadas penas e ossos de animais, a produção vem sendo controlada e somente os indígenas podem usar, como forma de desestimular a predação da fauna, que vem sendo fiscalizada por órgãos ambientais por quem adquire esse tipo de peça. Próximo ao centro comunitário da terra indígena, há uma casa de artesanato que expõe e comercializa os trabalhos manuais feito pelos puyanawa.
Outra tradição que virou uma importante fonte de renda para a comunidade é a produção da farinha de mandioca. Original do continente sul-americano e cultivada por povos originários há milhares de anos, a mandioca é também o coração da alimentação dos puyanawa. “É uma tradição que vem dos nossos antepassados que a gente mantém de pé, é uma referência”, diz Lucas Puyanawa, no dia em que recebeu os visitantes na Casa de Farinha montada na aldeia, que mostra como é feito todo o processo de beneficiamento da mandioca.
Por ano, os indígenas produzem mais de 500 toneladas de farinha, que são consumidas por eles próprios e vendidas no mercado local de Mâncio Lima. Por causa da mandioca e dos roçados de milho, feijão, frutas e outras culturas, os indígenas passaram pelo período mais dramático da pandemia sem depender da doação de alimentos, como ocorreu em comunidades pobres de todo o país.
Potencialidades
“Uma coisa que fica evidente para gente é que os povos da floresta não estão pedindo assistencialismo. As soluções estão ali, eles estão reflorestando. Há 14 anos, o território dos puyanawa era um lugar devastado, e hoje a gente vê uma floresta rica, um chão abundante. A gente precisa fortalecer o trabalho que eles estão fazendo”, destaca a empreendedora social Kamila Camilo, idealizadora do projeto Creators Academy, numa menção aos modos de produção em harmonia com a selva e os trabalhos de reflorestamento que a comunidade tem feito no território.
Para Kamila, após a visita de influenciadores digitais na região, e as trocas de saberes que resultaram dos encontros, fica para os puyanawa, a partir de agora, a possibilidade de receber outros grupos e trabalhar o turismo de base comunitária, como alternativa econômica para comunidades tradicionais. “É algo que acreditamos na Creators.”
Quem também teve uma experiência “transformadora” na visita ao território Puyanawa foi a jornalista Nathalia Arcuri, criadora do canal Me Poupe!, com mais de 7,4 milhões de inscritos na plataforma de vídeo e cerca de 5 milhões em outras redes sociais. O projeto é voltado para educação financeira a partir de uma linguagem simples, com informações sobre finanças pessoais por meio de uma comunicação direta e educativa. Na visita aos puyanawa, a convite da Creators Academy, Arcuri chegou a se reunir com os indígenas para discutir sustentabilidade econômica e social e afirma ter saído fortalecida com os conhecimentos adquiridos dos indígenas.
“Para os puyanawa, dinheiro não é acumular, mas é oportunidade, acesso. Isso é algo eu ainda não tinha escutado, sempre foi dito que dinheiro era segurança, saúde, outras coisas. E eles me falam como dinheiro foi como foi a mola propulsora para terem acesso à educação”, relata. “É um povo que entende o significado do suficiente, em contraposição ao excesso.”
Edição: Juliana Andrade