No mês em que a capital paraense, Belém, recebeu os Diálogos Amazônicos e a Cúpula da Amazônia, que reuniram autoridades e ambientalistas para discutir o desenvolvimento sustentável na região, pesquisadores denunciam um “crescimento absurdo” da abertura de ramais na floresta – trechos de estradas não oficiais – que acompanham a BR-319, na parte sul do Amazonas.
“É um intervalo muito curto de tempo para uma quantidade enorme de floresta que tem desaparecido. E uma expansão absurda de ramais”, diz à Agência Brasil Thiago Marinho, um dos responsáveis pelo mapeamento. “Houve uma taxa de crescimento do desmatamento absurda.” A velocidade da degradação preocupa.
“Não é só o grande volume de ramais, mas o intervalo muito curto de tempo em que surgiram. Isso mostra que existe um processo orquestrado de destruição florestal, que, de certa forma, não está sendo freado”, diagnostica.
O OBR-319 é uma rede de organizações da sociedade civil que busca o desenvolvimento sustentável na área de influência da BR-319, além de denunciar práticas degradantes do meio ambiente. Fazem parte do observatório instituições como Greenpeace, WWF-Brasil, Fundação Amazônia Sustentável (FAS) e Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam).
Imagens de satélite
O mapeamento da rede de ramais foi feito por interpretação de imagens de satélites disponibilizadas de forma gratuita pelo Projeto NICFI (Iniciativa Internacional do Clima e Florestas da Noruega, na sigla em inglês), do Ministério do Clima e Meio Ambiente da Noruega.
Os pesquisadores explicam que os quatro municípios foram escolhidos para o monitoramento porque ficam na região que concentra os maiores indicadores de desmatamento. Por meio de cruzamento de dados de degradação ambiental com as imagens de satélite, foi possível fazer uma ligação entre os ramais e o desmatamento. Isso demonstra, segundo o observatório, que os trechos não oficiais de estradas não são construídos para facilitar o deslocamento de populações locais e o escoamento da produção, mas, sim, para ajudar a logística da clandestinidade.
“A grande maioria do que acontece de queimada, desmatamento e exploração madeireira está numa distância igual ou inferior a 5 quilômetros de um ramal. Então, existe uma associação direta desses fatores, e ele iniciam a partir de um ramal. O ramal é o fator logístico para que essas atividades sejam possíveis de serem realizadas”, explica Marinho, pesquisador do Idesam.
A maior rede de ramais identificada pelo monitoramento se encontra em Canutama, com 1.755,7 km, seguida por Manicoré (1.704,1 km), Humaitá (1455,6 km) e Tapauá (176,8 km).
A abertura de ramais é um processo custoso, o que leva os pesquisadores a associarem essa prática a grupos com poder econômico.
“Abrir mais de uma centena de quilômetros dentro da mata fechada e região remota requer logística, um conjunto de pessoal, equipamentos. É muito difícil associar isso a um pequeno produtor rural. Quem faz todo esse sistema acontecer precisa movimentar uma grande quantidade de dinheiro”, diz Marinho.
Ciclo de degradação
Como o observatório colhe dados desde 2016, Thiago Marinho identifica um ciclo claro de degradação ambiental.
“Primeiro você tem uma área verde, área de floresta densa. Depois você vai acompanhando, ao longo das imagens, alguns ramais que vão entrando na floresta e estruturando uma rede”, detalha Marinho. “A floresta vai virando quase um queijo suíço. Buracos inteiros vão se formando dentro dela. É a retirada de madeira. Eles avançam com esses ramais, selecionam tudo que tiver ao redor que tenha valor de mercado e tiram toda a madeira. Essa área, na maioria das vezes, é grilada. Quando você vê que já foi tirada toda a madeira, aquela área de floresta foi para o chão”, descreve. “O futuro delas é virar pasto.”
A grilagem consiste na ocupação de terras públicas por indivíduos com interesses particulares que exploram o território de forma ilegal, para depois reivindicar as terras como patrimônio privado.
Outra consequência do avanço dos ramais é a expulsão de pequenos produtores e comunidades tradicionais, como indígenas.
A nota técnica elaborada pelo OBR-319 classifica como ramais os trechos de estrada não oficiais. Porém, o estudo não aponta que sejam todos, necessariamente, ilegais, uma vez que alguns se encontram em territórios particulares. Mas, de acordo com Marinho, pode-se concluir que ramais em áreas de conservação e terras indígenas são ilegais.
Territórios invadidos
O estudo identificou os tipos de territórios que concentram a abertura desses trechos de estradas. Em imóveis privados estão 869,2 km. Assentamentos federais têm 637 km; territórios indígenas, 545,4 km; unidades de conservação, 261 km; e territórios de uso comum, 43,7 km.
Chama a atenção dos analistas o fato de que a maior parte dos quilômetros de ramais estarem nas chamadas florestas públicas não destinadas (FPND). São 2.803 km, ou seja, mais da metade dos 5.092 km. As FPND são territórios que não têm destinação atribuída. Ou seja, não recebem programas de manejo florestal nem abrangem áreas de proteção de comunidades indígenas, por exemplo. De acordo com o OBR-319, ficam mais vulneráveis e sofrem com maior frequência a grilagem de terras, a degradação florestal e o desmatamento.
“É necessário que o Estado olhe com protagonismo para a população que mora nessa região, que fortaleça o papel delas, que dê suporte a elas, seja com terras indígenas, áreas de preservação”, sugere o analista do Idesam, que também defende a prática do manejo florestal sustentável.
“É uma retirada controlada da madeira de determinada região. Essa retirada é em uma escala muito pequena, ou seja, não causa desmatamento. Possibilita a regeneração da floresta. O produto passa por uma série de etapas de fiscalização. Paga imposto. Além disso, é um recurso que é direcionado diretamente para as comunidades que estão protegendo a floresta”, explica Marinho.
Dos ramais que foram identificados nas FPND, a maior parte, 1.539,3 km, fica em gleba federal. Isso representa 55% dos 2.803 km. Noventa e seis quilômetros (3%) ficam em glebas estaduais. Segundo o OBR-319, a preponderância de terrenos da União tem relação com o fato de que os trechos se originam, em sua grande parte, de estradas maiores e, uma vez que os municípios mapeados são atravessados por rodovias federais, ou seja, concebidas em territórios geridos pela União, é esperado que a maioria das redes de ramais esteja nas glebas sob jurisdição federal.
Existem ainda vazios cartográficos – territórios não reivindicados – que possuem 1.167,3 km de ramais (42% da malha dentro das FPND). O estudo avalia que a situação dessas florestas é ainda mais preocupante, pois não há definição de a qual ente federativo cabe a proteção das matas. “Principalmente quando essas áreas são próximas a grande empreendimento de logística, como estradas”, adverte Marinho.
Recomendações
A nota técnica do OBR-319 aponta algumas soluções para lidar com o surgimento de ramais e a consequente degradação ambiental. Entre elas, ações efetivas de fiscalização, comando e controle por parte das instituições responsáveis, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Amazonas (Sema-AM) e Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam).
Outras recomendações são a urgência no processo de destinação das FPND; combate à exploração predatória de madeira e à ilegalidade na cadeia da carne, a partir da identificação de fazendas produtoras de gado em áreas ilegalmente desmatadas; e penalização dos infratores que cometeram ilícitos ambientais, incluindo multas, destruição ou apreensão de equipamentos e prisões.
“É necessário que a sociedade e o Estado levem mais seriedade ao debate sobre a expansão de ramais na Amazônia. É isso que a gente quer trazer à luz”, conclui Thiago Marinho. Ele adiantou que o OBR-319 prepara mais uma nota técnica, abrangendo mais municípios amazônicos, que deve ser divulgada até o fim do ano.
Autoridades
Procurado pela Agência Brasil, o Ibama informou que “entende a necessidade no aumento de fiscalização na região e realiza planejamento estratégico para intensificar vistorias na área, em conjunto com ações prioritárias no estado, como o combate ao garimpo ilegal e ao desmatamento”. Na nota, o instituto acrescentou que “também conta com a atuação dos órgãos estaduais da região para o combate de atividades de degradação da floresta, a fim de superar os desafios enfrentados ao longo da rodovia”.
Também por meio de nota, o Ipaam – autarquia vinculada à Sema-AM – disse que ações de combate ao desmatamento “continuam sendo realizadas efetivamente nos municípios que compõem a região sul do Amazonas, principalmente na região abrangida pela rodovia BR-319, em áreas marginais e trechos onde o desmatamento é mais pronunciado”.
Como exemplo dessas ações, o órgão amazonense citou a operação Tamoiotatá III, executada de forma integrada com outras instituições: Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, Polícia Civil, Secretaria Executiva Adjunta de Planejamento e Gestão Integrada de Segurança e Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia e agências federais. Ao todo, de acordo com o instituto, cerca de 30 servidores estaduais estão envolvidos na operação, que possui um número “bastante expressivo” de autuações e embargos lavrados em toda a região sul do estado, que contempla uma porção considerável das áreas marginais da BR-319.
O Ipaam informa ainda que a criação de ramais vicinais ao longo da rodovia é atividade passível de licenciamento ambiental pelo órgão competente, bem como, sua manutenção e ampliação. “É necessária ação conjunta e integrada entre esses entes no sentido de conter a abertura de ramais ao longo da BR-319 e o desmatamento de florestas nativas, de uma forma geral. Salienta-se que a fiscalização na rodovia é de competência federal”, conclui a nota.
Edição: Juliana Andrade